sexta-feira, 22 de maio de 2009

Trabalho e Serviço Social

Vanessa Vasconcelos Pereira

Devido a mudanças ocorridas no mundo do trabalho, mudanças essas que interferem diretamente nas demandas impostas ao Serviço Social, há a necessidade de se conhecer essa categoria que:
“...além de indispensável para a compreensão da atividade econômica, faz referência ao próprio modo de ser dos homens e da sociedade.”(NETTO e BRAZ, 2007,p.29)

As condições de existência e reprodução da sociedade se obtém numa interação com a natureza: a sociedade, através dos seus membros, transforma matérias naturais em produtos que atendem às suas necessidades. Essa transformação é realizada em virtude do trabalho. Para tanto, o homem se vale da objetivação, que transforma a finalidade previamente construída na consciência em um produto objetivo. O que era apenas uma idéia se transforma em um novo objeto, anteriormente inexistente, o qual possui história própria. É a mediação que articula a teleologia (finalidade) com a gênese de um novo objeto.
Ao transformar a realidade (a natureza) o homem também se transforma porque desenvolve novas habilidades e porque precisa conhecer os nexos causais e as determinações mais importantes do setor da natureza que deseja transformar. As conseqüências dos atos humanos jamais coincidem completamente com a finalidade de sua origem, uma vez que há acaso nas objetivações, porque ao inserir na realidade já existente o novo objeto, desencadeia situações que jamais poderão ser previstas em sua totalidade. Isso altera não só a relação indivíduo/ natureza, mas também a relação dos indivíduos entre si, pois eles também têm que responder às novas necessidades e explorar novas possibilidades, postas nas novas situações que surgem. Logo:

“Os seres sociais tornaram-se mediados entre si e combinados dentro de uma totalidade social estruturada, mediante um sistema de produção e intercâmbio estabelecido.”(ANTUNES, 2006, p.19)

Para Lúkacs:

“Somente o trabalho tem na sua natureza ontológica um caráter claramente transitório. Ele é em sua natureza uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza (...) Todas as determinações que (...) estão presentes na essência do que é novo no ser social e estão contidas in nuce no trabalho. O trabalho, portanto, pode ser visto como um fenômeno originário, como modelo, protoforma do ser social.”( ANTUNES,2006, apud LUKÁCS, 1980)

O trabalho se constitui como categoria que possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser social. Ele está no centro do processo de humanização do homem, para apreender sua essencialidade é preciso vê-lo como momento de surgimento do pôr teleológico (surgimento de sua finalidade) quanto como protoforma da práxis social. O trabalho é constitutivo do ser social, mas o ser social não se reduz ou esgota no trabalho. Quanto mais se desenvolve o ser social, mais as suas objetivações transcendem o espaço ligado diretamente ao trabalho, quanto mais rico o ser social, tanto mais diversificadas e complexas são as suas objetivações.
O ser social é mais que trabalho, uma vez que cria objetivações que ultrapassam o universo do trabalho, para tanto existe uma categoria teórica mais abrangente: a categoria de práxis. Tal categoria inclui todas as objetivações humanas, inclusive o trabalho. Os produtos e obras resultantes da práxis podem objetivar-se materialmente e/ou idealmente: no caso do trabalho, sua objetivação é necessariamente algo material, mas há objetivações que se realizam sem gerar transformações em uma estrutura material qualquer ( como os valores éticos)

“A categoria de práxis permite apreender a riqueza do ser social desenvolvido: verifica-se na e pela práxis, como, para além das suas objetivações primárias, constituídas pelo trabalho, o ser social se projeta e se realiza nas objetivações materiais e ideais da ciência (...) construindo um mundo de produtos, obras e valores – um mundo social, humano, enfim, em que a espécie humana se converte inteiramente em gênero humano.(...) a categoria de práxis revela o homem como ser criativo e autoprodutivo: ser da práxis, o homem é produto e criação da sua auto-atividade, ele é o que (se) fez e (se) faz.”(NETTO e BRAZ,2007,p.44)

Quando o indivíduo que realiza trabalho não se reconhece nele enquanto sujeito, cria-se uma cisão entre o sujeito e o objeto, uma relação de estranhamento que permite a (re) produção de relações sociais nas quais a riqueza humana socialmente construída não é apropriada material e espiritualmente pelo indivíduos que a construíram.

“A alienação se (re) cria em novas formas, que invadem todas as dimensões da vida social e a objetivação do ser social, como um campo de possibilidades; se realiza em termos do desenvolvimento humano-genérico mas não se objetiva para o conjunto de indivíduos sociais.”(BARROCO,2006,p.35)

Para que o trabalho se realize como atividade livre é preciso que seja uma atividade criadora, consciente, que amplie as forças essenciais do ser social. Logo, não pode ser entendido como um meio de sobrevivência nem de exploração e dominação entre os homens. O trabalho é a atividade fundante da liberação do homem, a liberdade é uma capacidade inseparável da atividade que a objetiva.
“Liberdade é, portanto, superação dos entraves históricos às objetivações essenciais do ser social, o que pressupõe fundamentalmente condições objetivas que possibilitem a realização do trabalho de forma livre e criativa.”(BARROCO, 2006,p.62)
A liberdade não se revela ao homem além das fronteiras da necessidade, como um campo autônomo independente e face do trabalho; surge do trabalho como de um pressuposto necessário. A ação humana que é determinada apenas por uma finalidade interior e não depende de uma necessidade natural ou de uma obrigação social não é trabalho; é uma livre criação, qualquer que seja o campo em que se realize.

“O autêntico reino da liberdade começa, portanto, além das fronteiras do trabalho, se bem que justamente o trabalho é que constitui a sua base histórica necessária:'O reino da liberdade só tem início efetivamente no ponto em que se pára de trabalhar sob pressão da necessidade e da finalidade exterior; segundo a natureza da coisa, ele se acha assim fora da esfera própria da produção material.'”(KOSIK,1976,p.189)

Com as mudanças no mundo do trabalho causadas pela reestruturação produtiva, ocorreu uma subproletarização do mesmo, decorrência das formas diversas de trabalho parcial, precário, terceirizado, subcontratado,vinculado à economia informal,ao setor de serviços, etc. Houve uma heterogeneização, complexificação e fragmentação do trabalho. Essas transformações penetram fundo no operariado industrial tradicional, acarretando metamorfoses no mundo do trabalho. As garantias ao trabalho são reduzidas ou mesmo eliminadas. Formas de exploração do trabalho que pareciam relíquias da história são reatualizadas, inclusive o trabalho semi-escravo e o infantil.

“O predomínio do capital fetiche conduz à banalização do humano, à descartabilidade e indiferença perante o outro, o que se encontra na raiz das novas configurações da questão social na era das finanças.(...)Condensa a banalização do humano que atesta a radicalidade da alienação e a invisibilidade do trabalho social e dossujeitos que o realizam na era do capital fetiche.”(IAMAMOTO,2008,p.125)
O Serviço Social é desafiado por esse contexto tão adverso por seu lugar específico na divisão sócio-técnica do trabalho. A profissão precisa adensar esse debate para que a partir de análises concretas com base na realidade, possa contribuir para o enfrentamento teórico-prático de forma crítica e com competência. Esse pensamento:

“Requer que os fenômenos e processos sociais sejam re-traduzidos na esfera do pensamento, que procura apreendê-los nas suas múltiplas relações e determinações, isto é, em seu processo de constituição e de transformação, pleno de contradições e mediações(em sua totalidade”.(IAMAMOTO,2008,p.26)

Não se pode pensar em uma “prática profissional” como prática do indivíduo isolado, desvinculado da trama social que cria sua necessidade e condiciona seus efeitos na sociedade. Onde a mesma é tida como uma relação singular entre o assistente social e o usuário de seus serviços, com frágil conhecimento das expressões da questão social e das políticas sociais correspondentes. Quando a formação universitária privilegia a construção de estratégias, técnicas e formação de habilidades, centrando-se no como fazer, a partir da justificativa de que o Serviço Social é uma “profissão voltada à intervenção no social”, está fadada a criar um profissional que, aparentemente sabe fazer, mas não consegue explicar as razões, o conteúdo, a direção social e os efeitos de seu trabalho na sociedade.
Os assistentes sociais interferem nas relações sociais cotidianas, no atendimento às variadas expressões da questão social, tidas como experimentadas pelos indivíduos sociais no trabalho, na família, na luta pelos seus direitos.
Um desafio da profisão é romper com os vieses ora fatalistas, ora messiânicos presentes no discurso de alguns assistentes sociais, tal como se constata no cotidiano profissional. O outro desafio é participar de um empreendimento coletivo, que permita, de fato, trazer para o centro do debate, o exercício e/ou trabalho cotidiano do assistente social.

“Verifica-se, pois, uma tensão entre os trabalho controlado e submetido ao poder do empregador, as demandas dos sujeitos de direito e a relativa autonomia do profissional para perfilar o seu trabalho. Assim, o trabalho do assistente social encontra-se sujeito a um conjunto de determinantes históricos, que fogem ao controle e impõem limites, socialmente objetivos, à consecução de um projeto profissional coletivo no cotidiano do mercado de trabalho.”(IAMAMOTO, 2008,P.424)

Os assistentes sociais podem contribuir para a construção desse projeto societário, com a adoção, no cotidiano, de algumas diretrizes, que são: compromisso com a qualidade dos serviços públicos prestados à população; posicionamento em favor da universalidade do acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais públicas;defesa da gestão democrática e articulação comas entidades da categoria dos assistentes sociais, com o movimento de outras categorias e com a luta pela garantia dos direitos dos trabalhadores. O desafio é fortalecer a luta pela garantia e ampliação dos direitos sociais e a democratização da política social.

“O pensar dialético das profissões como movimento;organização, saber, regulamentação exige uma análise concreta da realidade concreta, na qual existe uma pluralidade de dimensões da ação profissional, que implica tanto a relação com as forças do capital, como a relação de poder particularizada nas organizações, a relação com os usuários, a relação com os movimentos sociais e segmentos diferenciados das sociedades na prestação de serviços.”(FALEIROS,2008. P.37)

Para a realização de uma prática competente devemos observar a totalidade dos fatos, nos dar conta da relação entre o imediato e as mediações mais profundas das questões. Há que se abandonar os pensamentos simplificados, analisando as situações concretas como expressão de correlações de forças, articulando-se a análise dos conflitos, dos interesses em jogo e das estratégias em movimento.

“O impacto redistributivo das políticas sociais precisa ser analisado no contexto da correlação de forças onde se insere a ação do assistente social. O corte de certos recursos tem diminuído a amplitude da ação social, mas várias políticas, como a de combate à pobreza, vêm trazendo novas possibilidades de recursos. O processo contra-hegemônico precisa estar atento às conjunturas de forma permanente.”(FALEIROS,2008,p.43)

Não podemos perder a capacidade de crítica, a capacidade de buscar os fundamentos, a essência da crítica. Se quisermos viver a contemporaneidade com consciência de si, dos outros, do contexto, e com propostas, é preciso um reencontro profundo e constante com a crítica.

“A competência política e teórico-metodológica nos auxilia a demarcar os limites e alcances da prática profissional alicerçados num conjunto de habilidades que vão desde o reconhecimento das particularidades do terreno de atuação do Serviço Social e suas implicações político-ocupacionais até o domínio dos recursos técnico-instrumentais mobilizados para analisar e intervir sobre algum aspecto da realidade, como para sistematizar e refletir sobre sua própria prática.”(ALMEIDA,1996, p.41)

O Serviço Social têm que estar atento às mudanças ocorridas no mundo do trabalho por que essas mudanças interferem diretamente no cotidiano de seus usuários, e por consequência, nas demandas, que se tornam cada vez mais complexas. O profissional ao repensar as determinações sociopolíticas do seu trabalho passa a enfrentar, em conjunto com a sociedade, os dilemas da construção da esfera pública, da democracia, da cidadania dos direitos a ela inerentes, considerando as particularidades do exercício profissional e sua condição de cidadão.
Observamos alterações na demanda de trabalho do assistente social, no mercado de trabalho, nos processos de trabalho e nas condições em que se realizam, nos quais os assistentes sociais ingressam enquanto profissionais assalariados. As relações de trabalho são desregulamentadas e flexibilizadas. Verifica-se uma ampla retração dos recursos institucionais para acionar a defesa dos direitos e dos meios de acessá-los.

“São muitos os desafios atuais. O maior deles é tornar esse projeto um guia efetivo para o exercício profissional e consolidá-lo por meio de sua implementação efetiva, ainda que na contramão da maré neoliberal , a partir de suas próprias contradições e das forças políticas que possam somar na direção por ele apontada(...) Exige-se uma análise acurada das reais condições e relações sociais em que se efetiva a profissão, num radical esforço de integrar o dever ser com a objetivação desse projeto, sob o risco de se deslizar para uma proposta idealizada, porque abstraída da realidade histórica, elidindo as particularidades, determinações e mediações que incidem no prcessamento dessa especialização do trabalho coletivo.”(IAMAMOTO,2008,p.233)

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:

ALMEIDA,Ney Luiz T. de.”Considerações para o exame do processo de trabalho do Serviço Social.”Serviço Social & Sociedade.São Paulo:Cortez,n.52,dez 1996

ANTUNES,Ricardo.”Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.”São Paulo: Boitempo,jun.2006

BARROCO,Maria Lúcia Silva.”Ética e Serviço Social:fundamentos ontológicos.”4°ed.
São Paulo, Cortez, 2006

FALEIROS Vicente de Paula.”O Serviço Social no mundo contemporâneo.”In:FREIRE,Lúcia M.B, FREIRE Silene de M.,CASTRO Alba T. Barroso (orgs.). “Serviço Social, política social e trabalho: desafios e perspectivas para o século XXI.”2°ed.São Paulo: Cortez;Rio de Janeiro, UERJ,2008

GORZ, André. “Direito ao trabalho versus renda mínima.”Serviço Social & Sociedade.São Paulo: Cortez,n.52,dez.1996

IAMAMOTO Marilda Vilela.” Serviço Social em tempo de capital fetiche:capital financeiro, trabalho e questão social.”2°ed.São Paulo:Cortez,2008
KOSIK,Karel.”Dialética do concreto.”.tradução de Célia Neves e Alderico Toribo,2°ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra,1976

LESSA,Sérgio. “A centralidade ontológica do trabalho em Lukács.”Serviço Social & Sociedade.São Paulo: Cortez,n.52,dez.1996

NETTO,José Paulo e BRAZ, Marcelo.” Economia política uma introdução crítica.” São Paulo: Cortez,2007

SILVA. Maria do R. de F. e.”Adeus ao trabalho?Ensaio sobre as metamorfoses do mundo do trabalho”Serviço Social & Sociedade.São Paulo: Cortez,n.52,dez.1996